Livro A Grande Arte de Ser Feliz

Em “A grande arte de ser feliz”, Rubem Alves nos presenteia com uma seleção de crônicas tocantes sobre a vida. O autor nos propõe que cada pensamento seja como um novo brinquedo, que nos dê alegria, nos divirta e também nos faça pensar.

Muitas das crônicas foram escritas a partir de dúvidas e sugestões de leitores que acompanham seu trabalho e foram enviadas a ele por meio de cartas, e-mails ou telefonemas. Seu estilo único, profundo e metafórico é desenvolvido em três partes: Coisas que dão alegria, Coisas do amor e Coisas da alma, sendo que cada uma delas apresenta de forma encantadora os sentimentos e situações com os quais todos nós já nos deparamos um dia.

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GOSTARIA QUE VOCÊ usasse este livrinho como se usa um brinquedo: por puro prazer.

Um brinquedo, para ser bom, tem de conter um desafio. Ele me olha e me diz: “Veja se você pode comigo!” Assim é uma pipa, um pião, um quebra-cabeças, um bilboquê, um jogo de xadrez, um problema de matemática.

Brinquedos em que basta apertar um botão para a coisa acontecer logo perdem a graça e vão para o armário. Como é que você brinca com as coisas que escrevo?

Pensando os seus próprios pensamentos. Pensar é uma deliciosa forma de brincar. Livros que dão respostas prontas são iguais aos brinquedos que funcionam quando apertamos o botão. Vai, assim, o meu desafio: “Brinque comigo!”.

RUBEM ALVES

LAUDATE PUERI

CADA UM LOUVA COMO PODE.

Os magos, ricos, trouxeram presentes caros, preparados por artistas e comprados em lojas de cristal; os pastores, pobres, trouxeram nas mãos coisas que elas mesmas haviam colhido: o brilho das estrelas nas noites tranquilas, a música das flautas na solidão das colinas; o cheiro do capim molhado de orvalho; as vacas e o jumento, sem nada poder colher ou comprar, louvaram a criança com seus olhares mansos e, musicalmente, binariamente, com o balanço do rabo.

Eu também louvo do jeito como sei e posso: são cinco horas da manhã.

A lua, um “D” brilhante, faz tranquilamente o seu serviço de luz no meio do céu. Penso em você, que ainda não vi nem pensa em mim, por não saber que eu existo.

Me pergunto sobre o louvor que sei. Música, é claro. Não existe nada mais profundo. A alma, nos seus lugares onde as vozes perturbadas dos homens não atingem, onde tudo é silêncio, lá não há palavras.

Lá só existe música. Os físicos de hoje, quanto mais sabidos, mais tolos ficam. Esquecem-se da sabedoria dos antigos. Dizem que no início de todas as coisas está a energia.

Agora eu pergunto a você que nunca foi a nenhuma escola: o que é que vem primeiro, a música ou o instrumento? Qualquer tolo sabe que a música veio primeiro.

Primeiro os homens ouviram a música com os ouvidos da alma. E tão fascinados ficaram que trataram de inventar instrumentos para que também os ouvidos do corpo a pudessem ouvir.

Da música nasce a matéria. Os físicos antigos sabiam disso. Olhavam para os céus estrelados e ouviam a silenciosa música das esferas: cada astro era um globo de cristal, instrumento de uma orquestra na qual Deus tocava sua música.

O evangelista escreveu: “No princípio era o Verbo”. Mas ele, distraído, se esqueceu de dizer que esse Verbo eram as palavras de uma canção. Ele prestou só atenção na letra.

Caso contrário, teria escrito: “No princípio era a Música”.

Uma vez que, com a sua chegada, o universo se inicia de novo, achei que seria próprio combinar o escuro da noite, o brilho da lua e a minha abençoada solidão de madrugada com a música, para assim louvar você.

Não quero lhe oferecer só a música que existe nos vãos das minhas palavras. Quero lhe oferecer música pura. E foi assim que, no meio dos meus CDs, procurei e achei: Laudate pueri — louvai, crianças — George Friedrich Handel, Dietrich Buxtehude, Antonio Vivaldi.

E é isso que ouço enquanto escrevo.

Prestando bem atenção, você perceberá que seu nome é música — mínima música. Basta repetir alto: Ana Carolina, Ana Carolina, Ana Carolina — menina bailarina, que dança em câmera lenta, em passos binários — ou será o movimento das asas de uma gaivota, binários também — talvez não haja diferença —, o que todos os bailarinos desejam é voar como pássaros, por isso saltam tão alto, suplicam aos deuses o milagre de transformar sua dança em voo — desejam levitar, flutuar no ar.

Ritmo binário, tum-tum, tum-tum, tum-tum, assim bate o coração de mãe, a que seus ouvidos estiveram encostados por nove meses, e de tanto ouvi-lo ele ficou gravado no seu corpinho, que agora sabe que quando esse ritmo é ouvido o universo está em ordem.

Tum-tum, tum-tum, tum-tum, não há o que temer, pode dormir. Assim batem as canções de ninar, assim balançam os berços, assim batem as mãos no bumbum do nenezinho. Todos querem imitar o coração materno.

O que vou lhe dizer é um segredo, conversa entre avô e neta — os pais estão excluídos, não diga nada para eles.

Aprenda: os adultos são uns tolos. E preciso que você não fique como eles. Claro que eles vão fazer de tudo para passar você na maquina de xerox chamada escola.

Resista. Se eu ainda estiver por perto, eu a ajudarei. Palavra de avô. Pergunte à Mariana, sua priminha. Ela confirmará o que estou dizendo.

O Pequeno Príncipe… Até me esqueci de perguntar se você, em sua longa viagem até esta terra, não passou por ele.

Como ele é? É fácil saber. Mora num minúsculo asteroide, cuida de uma rosa, tem um carneirinho e morre de rir quando se lembra dos adultos… Ele percebeu aquilo que só nós, crianças, percebemos: que eles, os adultos, são todos doidos.

Por exemplo — foi ele que me disse isto: se a gente contar para um adulto que a casa da gente é branca, de janelas vermelhas, flores no jardim e pássaros no telhado, ele fica olhando, cara espantada, como se fôssemos de um outro mundo.

Agora, se a gente disser que mora numa casa que custou R$ 300.000,00, ele sorri e diz: “Mas que linda casa!”

Os adultos pensam que o maior e o mais caro são o melhor.

Pensam que a alegria e os deuses vêm empacotados em embrulhos grandes. Por exemplo: quando falam em Deus, pensam logo numa coisa grande, muito grande, terrível, do tamanho do universo, e ficam falando em coisas que o pensamento não entende, como tempo de bilhões de anos e distancias de anos-luz.

Não sabem que a alegria, o maravilhoso, o divino estão ali pertinho, ao alcance da mão. Divina é uma gota de orvalho, uma amora roxa, uma cambalhota de tiziu, um raio de sol numa teia de aranha, a cor de uma joaninha, um bombom, uma bolinha de gude, um amigo, uma acertada de bilboquê: coisas pequenas, sem preço.

Como você. Você é pequenininha e, ao preço de mercado, não deve valer muito. Mas você é mais maravilhosa que o universo inteiro. Porque você tem o poder de dar alegria e de sentir alegria.

O universo não tem. Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e uma criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus vê o mundo com olhos de criança.

Está sempre à procura de companheiros para brincar. Os grandes, doidões e perversos pensam que Deus é como eles, de olho malvado, que espiona em todos os lugares, para castigar.

Você sabe que não é assim.

Sua boquinha no seio da mãe: sem saber nada de você já sabe a filosofia essencial. No seio se encontra o resumo de tudo o que vale a pena ser sabido.

Primeiro, que é importante viver. O leite dá vida. Mas o seio não é só o lugar do leite. É o lugar do deleite. Prazer. A gente vive para ter prazer.

No seio se aprende que viver é bom. Viver é divino. O mundo é um corpo cheio de seios, um espaço cheio de paraísos. Mas os seios e os paraísos só aparecem àqueles que têm os olhos de criança.

Essas coisas que estou lhe dizendo são coisas que só aprendi direito depois que fiquei avô.

Eu sabia delas quando era menino. Quando virei adulto fiquei sério e esqueci. Depois de ficar velho, esqueci as coisas de adulto e reaprendi o que havia esquecido.

Sabe, Ana Carolina: estou fazendo uma casa para vocês, minhas netas: você, a Mariana e a Camila, e os outros que vierem.

Lá estou colocando minhas coisas de criança, brinquedos. Somente os dignos de ser preservados. Lá estão piões, bolas de gude, pipas, caleidoscópios, quebra-cabeças, bonecas, marionetes, fantoches, um mundaréu de objetos inúteis que não servem para nada, mas que têm o poder de fazer sonhar, livros de estórias, de poesia, de contos, livros de figura, jardinzinhos, fontes, plantas, bonsais, quadros, pôsteres, CDs.

Esta é a minha casa, a minha herança: uma casa de brinquedo para vocês. Agora que você chegou, e sem ter visto o seu rosto, eu olho para os meus brinquedos e imagino você brincando com eles.

Isso me faz feliz. E, quem sabe, até mesmo seus pais e outros adultos que se tornaram crianças se juntarão a nós. Beijão do seu avô, companheiro de brincadeiras.

MEU DEUS, ME CURA DE SER GRANDE!

O CÉU ESTAVA ENFARRUSCADO.

O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo de ficar molhadas. A gente se lembrou de Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo — por dó dos mortais em noites iguais àquela.

Se não fosse por ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante.

No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro da fumaça. Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto de minha vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha.

Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a estória da sopa de pedra…

O fogo é um poder bruxo, tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça.

Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memoria eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Digo sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar sentado com eles diante de um fogão aceso.

É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.

“Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só dia da minha infância… Hoje não faço isso.

Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera…” Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura.

O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.

“Quando eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios…”

“…a mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: ‘vou no quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós’ — e virava a taramela para abrir a porta da cozinha.

O pai dizia sempre a mesma coisa, todo dia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo…’ mas a mãe nem ligava.

Com as canecas quentes de chá na mão — como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! — a gente pedia ao pai pra contar estórias.

Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando pela primeira vez. Vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha.”

Aí ela parou e começou a divagar.

Lembrou-se de um tio.

“Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala — ele receberia um bom dinheirinho por ela.

Recusou. E se explicou: ‘Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste quando a chuva viesse…’ E as pessoas eram diferentes…’.

Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.

“Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu.

Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou…”

Já sugeri que teologia é coisa que deve ser feita na cozinha.

Claro que não é qualquer cozinha. Cozinha de micro-ondas e fogão a gás não serve. Sei que é mais prático. Fogão a lenha é coisa complicada. É preciso muita arte para acender o fogo.

E é preciso cuidado para que ele não se apague. Mas que sonhos me fazem sonhar um forno de micro-ondas? Que sonhos me fazem sonhar um fogão a gás?

Enquanto a Maria Alice falava, eu voltava para minha casa de infância, em Minas Gerais, casa velha, forro de esteira, assoalho de tábuas largas, já meio apodrecidas, goteiras sem conta nos dias de chuva.

A gente não se afligia. Isso era o normal. Telhado sem goteira era impensável. E era bom ouvir os pingos da chuva batendo nas panelas e bacias espalhadas pela casa.

Era do mesmo jeito, nas noites frias. Com duas diferenças: a gente apagava a luz. Não por economia, mas para fazer a magia mais forte. No escuro os rostos refletiam as brasas, ficavam vermelhos contra o fundo negro.

A imaginação ficava bêbada, as estórias, mais fantásticas. A outra diferença é que havia sempre o apito rouco do trem de ferro. Vinha resfolegando, apitava na curva um gemido rouco, triste.

Chamuscava a paineira velha com milhares de faíscas que saíam aos jatos, ejaculações incandescentes, e eu imaginava que assim tinham nascido as estrelas — eram faíscas de um trem de ferro cujo maquinista era Deus.

Fernando Pessoa era tomado por êxtases metafísicos ao contemplar o cais de pedra e os navios que partiam.

Eu sinto o mesmo ao pensar no trem de ferro e no seu apito rouco que não mais se ouve. “Um trem de ferro é uma coisa mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, / atravessou minha vida, virou só sentimento” — assim foi o gemido rouco da Adélia Prado, poema — apito de trem de ferro.

Lembro-me do meu assombro quando meu pai completou 60 anos.

Como ele me parecia velho!

Com certeza já estava remando sua canoa rumo à terceira margem do rio. Eu acho que a terceira margem é a saudade. Diz o Riobaldo que “toda saudade é uma forma de velhice”.

Hoje, 15 de setembro, jogo no rio da saudade mais um ano de vida. É a 63a vez que faço isso. A vela está ficando curta. E o faço rezando, com a Maria Alice e a Adélia: “Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande…”

OS OLHOS DE CAMILA

O TEMPO OPERA CRUÉIS transformações sobre o corpo.

Um dos livros mais sábios jamais escrito, o Tao Te King, assim as descreve: “Um homem, ao nascer, é macio e frágil. Ao morrer ele é duro e rígido. As plantas verdes são macias e cheias de seiva.

Na sua morte elas estão murchas e secas. Portanto, o rígido é o que não se curva, são discípulos de vida”.

Esse processo inexorável de endurecimento manifesta-se primeiramente nos olhos. A morte tem especial predileção pelo olhar.

Bachelard sabia disso e se perguntava: “Sim, a luz de um olhar, para onde ela vai quando a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um morto?”

É nos olhos que ela injeta o seu sêmen…

Escher.

Não sei se esse nome lhe é familiar. É melhor que seja porque, no dia do Juízo Final, Deus vai lhe perguntar sobre ele, e não vai gostar se você disser que nunca ouviu esse nome.

Assim, trate de conhecê-lo antes de morrer.

Os desenhos de Escher se encontram em qualquer livraria boa. Não são baratos. Se forem caros demais, veja na livraria mesmo. Frequentar livrarias para brincar de ver figuras e ler é uma felicidade gratuita.

Já passou pela sua cabeça “playcenters”? Brincam as ideias com as palavras, brincam os olhos com as imagens, brinca o nariz com os cheiros cheios de memórias que moram nos livros, brinca o tato, os dedos acariciando o papel liso como se fosse a pele do corpo amado…

Mas, se você tem o dinheiro, vale a pena comprar.

Você gastou dinheiro comprando óculos para ver melhor. Gaste dinheiro agora dando aos seus olhos o que ver. Caso contrário, você será o tolo que compra panelas e não compra comida.

As gravuras de Escher são comida para os olhos: fazem mais bem aos olhos do que os melhores colírios…

Os desenhos de Escher são koans, desafios ao olhar, terremoto da inteligência.

Uma das suas gravuras mais terríveis tem o nome de “Olho”: é só um olho e, dentro dele, refletida, a imagem da morte.

Comparando o dito de Tao Te King com a gravura de Escher, concluo que aquele é um olho adulto, pois é no corpo endurecido de adultos que a morte mora.

O remédio, segundo o mesmo livro, é tornarmo-nos “de novo como crianças pequenas”.

Se isso lhe acontecer, você não voltará a ser criança pequena de novo, como pensou o tolo Nicodemos quando Jesus lhe disse a mesma coisa; você ficará como criança pequena.

Ficar como criança pequena é ficar sábio. Diz o Tao Te King que o segredo do sábio, a razão por que todos olham para ele e o escutam, é que “ele se comporta como uma criança pequena”.

O sábio é um adulto com olhos de criança. Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade mágica de rejuvenescimento.

Sua cabeça de cientista provavelmente discordará. Você dirá que somente os adultos veem direito.

Os adultos passaram muitos anos nas escolas, seus olhos fizeram caminhadas infinitas pelos livros. Os seus olhos sabem muito, estão cheios. Por isso, devem ver melhor.

Mas esse é, precisamente, o problema.

Quando um balde está cheio de água, não é possível colocar mais água dentro dele.

Os olhos dos adultos são como balde cheio, como um espelho no qual se colou uma infinidade de adesivos coloridos.

O quadro ficou bonito. Mas o espelho se foi. O espelho parou de ver. Ficou cego.

Os olhos das crianças são baldes vazios. Vazios de saber. Prontos para ver. Querem ter tudo.

Tudo cabe dentro deles. Minhocas, sementinhas, bichinhos, figuras, colheres, pentes, folhas, bolinhas, colares, botões — os olhos de Camila, minha neta, se encantam com as coisas. Para eles, tudo é fantástico, espantoso, maravilhoso, incrível, assombroso.

Os olhos das crianças gozam da capacidade de ter o “pasmo essencial” do recém-nascido que abre os olhos pela primeira vez. A cada momento eles se sentem nascidos de novo para a eterna novidade do mundo.

Walt Whitman diz que, ao começar os seus estudos, o que mais o agradou foi o dom de ver.

Ficava encantado com as formas infinitas das coisas, com os menores insetos ou animais: “Esse papo inicial me assustou tanto, me agradou tanto, que não foi fácil para eu passar, seguir adiante, pois eu teria querido ficar ali flanando o tempo todo, cantando aquilo em cânticos extasiados”.

Os olhos dos adultos, havendo se enchido de saber, e havendo, portanto, perdido a capacidade de ver das crianças, olham sem nada ver (daí o seu tédio crônico) e ficam procurando cura para sua monotonia de ver em experiências místicas esquisitas, em visões de outros mundos, ou em experiências psicodélicas multicoloridas.

Pois eu lhe garanto que não existe visão de outro mundo que se compare, em beleza, à asa de uma borboleta.

Quem o disse foi Cecília Meireles, poetisa. Os poetas são religiosos que não necessitam de religião porque os assombros deste mundo maravilhoso lhes são suficientes. Foi assim que ela pintou a cosmologia poética que seus olhos viam: “No mistério do Sem-Fim, / equilibra-se um planeta.

/ E, no planeta, um jardim, / e, no jardim, um canteiro: / e, no canteiro, uma violeta, / e sobre ela, o dia inteiro, / entre o planeta e o Sem-Fim, / a asa de uma borboleta”.

“Um homem, ao nascer, é macio e frágil.

Ao morrer ele é duro e rígido.”

O que o sábio chinês disse ao corpo inteiro, o poeta espanhol Antônio Machado disse aos olhos:

“Olhos que para a luz se abriram / um dia para, depois, / cegos retornar à terra, / fartos de olhar sem ver!”.

ANJOS

EU NUNCA VI UM ANJO.

Olhos que veem anjos são olhos especiais, dádivas dos deuses, não são todos que os possuem. Eu não sou um deles. Mas os deuses me dotaram de um outro órgão para sentir os anjos: o nariz.

O nariz é o meu órgão angelical. Eu não vejo anjos. Eu cheiro anjos. Para mim os anjos são seres nasais. Eles se revelam sob a forma de perfumes. Vou andando solidamente pela rua, imerso em meus pensamentos comuns.

Repentinamente, uma súbita fragrância enche a minha alma. Fico leve, perco a solidez, crescem-me asas nas costas e sou instantaneamente transportado para um não-sei-lá-onde, onde fui feliz. Aquela felicidade perdida me é devolvida.

Como o acontecido não foi resultado de coisa que eu tenha feito, não acho descabido imaginar que o responsável tenha sido um anjo perfumado, meu amigo.

Minha educação angelical começou muito cedo.

Tomei minhas primeiras lições num salão de barbeiro. Havia lá uma folhinha que a todos comovia e tranquilizava: uma paisagem bucólica, um menino e uma menina, irmãozinhos, pés descalços, pelas trilhas da floresta, sozinhos, prestes a atravessar uma frágil pinguela sobre um abismo: tão fácil cair.

Mas não havia razões para temer. Protegia-os um anjo de beleza máscula e brancas e enormes asas. Com um quadro daqueles na parede os pais e as mães podiam dormir tranquilos.

Era o Anjo da Guarda, que, ao que me consta, continua a guardar as criancinhas que atravessam pontes nas florestas.

Numa loja de sírios aprendi sobre os pés dos anjos. O senhor humilde se aproximou do balcão e pediu: “Um pé de anjo número 29”.

Logo o seu Nagib atendeu à ordem do freguês, trazendo-lhe um par daquilo a que hoje se dá o nome de tênis.

Pé de anjo era tênis branco. É fácil compreender por quê. O maior orgulho dos pais beatos era que a filha desfilasse na procissão vestida de anjo, o que era o terror dos patos cujas penas seriam arrancadas sem dó nem piedade para a confecção das asas dos seres celestes.

Inúteis eram os grasnados dos patos: não há Anjos da Guarda para protegê-los. Branca a grinalda, brancas as asas, branco o vestido — os sapatos teriam de ser brancos também.

Pé de anjo…

Depois foi na escola dominical da igreja protestante que eu frequentava. Me faziam cantar um hino que dizia: “Eu quero ser um anjo / um anjo do bom Deus / e imitar na terra / os anjos lá do céu”.

Foi então que se manifestou minha vocação para a heresia. Pensei que o hino estava errado: se Deus me fizera menino, era porque ele queria que eu fosse menino. O hino era, assim, uma rebelião contra a vontade divina.

Deus queria que eu fosse menino e os religiosos eram mais piedosos que o próprio Deus e queriam que eu fosse anjo. Eu não queria ser anjo, pois achava que vida de anjo devia ser muito chata.

Depois, aprofundei meus conhecimentos angelológicos na leitura dos poetas.

Está lá num dos poemas de Fernando Pessoa: “Que anjo, ao ergueres a tua voz, sem o saberes, veio baixar sobre esta terra onde a alma erra e soprou as brasas de ignoto lar?” Disso sabia o poeta: que os lares perdidos não são perdidos.

Estão sob a guarda dos anjos que moram na memória. Lá os lares ignotos vivem como brasas escondidas sob as cinzas do esquecimento. Mas os anjos da memória não deixam que eles sejam esquecidos.

Vez por outra batem as suas asas, a cinza voa, as brasas viram fogo. Sobre isso sabe a psicanálise, muito embora ela tenha pudores de chamar os anjos pelo seu nome próprio e tenha inventado outros.

Mas o nome não importa: tudo é anjo.

Rilke foi meu outro professor. Para ele os anjos são seres terríveis, muito diferentes daquele que seguia as duas crianças pelas inocentes trilhas da floresta.

Suas Elegias de Duíno se iniciam com uma invocação de Anjos surdos. “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte.

Pois o que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível!, desdenha destruir-nos? Todo Anjo é terrível.” Esse texto está carregado de mistérios que o espaço não nos deixa investigar.

Basta ouvir sua exclamação pavorosa: “Todo Anjo é terrível!”

Com isso concordaria Jacó, filho de Isaac, puro medo da cabeça aos pés. Ele ia andando por um caminho invocando a proteção do Anjo da Guarda.

Era noite escura. E o Anjo lhe apareceu — terrível, horrendo, de espada na mão.

“Defenda-se ou o mato”, o Anjo disse.

Jacó não teve escolha. Puxou sua espada e lutou com o Anjo a noite toda.

E pasmem: venceu. Ao romper da aurora, ao se despedir, o Anjo derrotado lhe disse: “Fui derrotado, mas lhe deixarei uma lembrança, para que você não se esqueça”. E num gesto súbito tocou a coxa de Jacó com a sua espada.

Jacó ficou manco pelo resto da vida. Nunca mais se esqueceu. A cada mancada ele se lembrava e se sentia valente. E nunca mais teve medo. E até teve de mudar o seu nome para Israel: “aquele que lutou com Deus e prevaleceu”.

Por vezes é preciso lutar com o Anjo à noite toda para se ganhar um nome, para se descobrir a própria verdade, enterrada sob as cinzas do medo.

Mas os Anjos de que mais gosto são aqueles que foram fazer uma visita a Abraão e Sara, avós de Jacó.

Abraão já era velho, desdentado, flácido, esquecido dos distantes prazeres do amor. Sara, sua mulher, enrugada, seios murchos e compridos, pendurados, velha — só lhe restavam os prazeres da cozinha.

E ela estava cozinhando para os dois hóspedes quando ouviu a conversa que se desenrolava na sala. Um deles se pôs a dizer disparates. Com certeza, bebera demais. Pois ele afirmou que ela ficaria grávida e teria um filho.

Sara teve um ataque de riso — riu tanto que entornou o guisado que preparava. Os visitantes se ofenderam e, como castigo, disseram que o filho que ela ia ter chamar-se-ia Isaac, que quer dizer “riso”.

Vídeo sobre o livro - Book Trailer

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Ficha Técnica do Livro

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Autor(es)
EditoraPlaneta
IdiomaPortuguês
ISBN8542203569 9788542203561
FormatoCapa comum
Páginas160
Livro físico na

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