A ambivalencia A intimidade com o terrorismo global vai sendo aprofundada a medida que o espaco ocidental, objecto prioritario da agressao em curso, recebe sucessivos golpes que atingem, mais do que interesses materiais, a sua confianca nas instituicoes que organizou para manterem uma ordem no mundo, a confianca das sociedades civis nos respectivos governos, a confianca na capacidade das forcas de seguranca e de defesa, a fidelidade aos valores matriciais da sua cultura.
O processo de abandono da regencia imperial dos ocidentais sobre o mundo dos povos que qualificaram de barbaros e selvagens, recuo que se consumou no seculo XX, deixara sobrevivente a confianca no modelo observante da ordem internacional com expressao na Carta da ONU e na Declaracao Universal dos Direitos Humanos, entregues a responsabilidade das varias organizacoes que se definiram para agir nos dominios da economia, da seguranca, da cultura, do desenvolvimento.
Um escritor imaginativo, Zygmunt Bauman, chamou a esta estrategia o metodo da jardinagem, confiante numa racional idade que abandonava o metodo da soberania colonial, mas nao a perspectiva reguladora do globalismo crescente, disciplinado pelos criterios ainda ocidentais.
O facto de a transicao dos modelos de intervencao ter produzido a novidade historica de todas e cada uma das areas culturais do mundo falarem com voz propria na cena internacional, fez com que lessem o normativismo decretado a nova luz das suas escalas de valores, introduzindo a instabilidade nas estruturas, e o recurso a violencia que se tornou esdruxula com o terrorismo global.
A NATO, a organizacao de defesa que sobreviveu a queda do Muro de Berlim em 1989, quando celebrou o seu meio seculo de existencia, em Whasington, capital da superpotencia sobrante, no ano de 1999, tomou consciencia da mudanca, e por isso aprovou um novo conceito estrategico em que identificou o terrorismo internacional como um dos riscos que ameacavam os Estados membros.
Tal como frequentemente aconteceu com as guerras do passado, a experiencia anterior nao habilita a enfrentar a novidade das agressoes, e o atentado de 11 de Setembro de 2001, que derrubou as Torres Gemeas, mostrou que a identificacao do risco nao foi seguida pela definicao de uma nova estrategia adequada, nem pela NATO nem pelos Estados membros.
Os EUA, humilhados e ofendidos pela Al Qaeda, trataram de rever em crise a politica de seguranca, assinando em 17 de Setembro de 2002, um ano depois, a nova estrategia de Seguranca Nacional complementada, em Fevereiro de 2003, por uma Estrategia Nacional para combater o Terrorismo; a Franca decidiu rever o seu Plan Vigipirata de 1978, para enfrentar a nova ameaca, definindo a intervencao do Exercito nas accoes preventivas internas; a NATO, na Cimeira de Praga de 2002, elaborou o Conceito Militar MC-472 com o mesmo objectivo; e a Espanha, que haveria de ser gravemente atingida, aprovou em Fevereiro de 2003 a Revisao Estrategica de Defesa, incluindo na revisao o 'terrorismo exterior dirigido contra o Ocidente', e convocando as Forcas Armadas para enfrentarem essa ameaca no ambito da NATO e da Uniao Europeia, nas operacoes de paz e ajuda humanitaria, e no apoio as forcas de seguranca do Estado.
O atentado de 11 de Marco em Madrid demonstrou que a relacao entre a ameaca do terrorismo global e a resposta de seguranca nao encontrou modelo adequado, assim como o unilateralismo dos EUA, evidenciado no Iraque, parece ter implantado um perigo global para todos os ocidentais sem ter conseguido contribuir para uma doutrina de seguranca que aproveite a paz mundial.
A leitura dos efeitos colaterais acrescentados pela intervencao no Iraque aos produzidos pela agressao sofrida, incluindo a instabilidade que atingiu o Conselho de Seguranca, a NATO, e a Uniao Europeia, mais o descredito que feriu os governos da coligacao aleatoria que agiu sem plano de ocupacao do territorio, criando o vazio de representatividade do Estado iraquiano, alienando a confianca da populacao, e mostrando a falta de fundamento da alegada existencia de armas de destruicao macica, vai consentindo uma identificacao vagarosa dos perfis do agressor e da agressao, das causas e das motivacoes, e das estrategias inovadoras.
Uma das principais embaracantes novidades e que esta definitivamente em crise o principio, firmado em Westfalia, de ser o Estado nao so o unico legitimo titular da violencia, mas tambem de facto a unica entidade capaz de fazer a guerra.
O fim do bipolarismo, em 1989, nao confirmou a esperanca dos dividendos da paz, porque se multiplicaram as capacidades de recorrer as armas estrategicas, porque se multiplicaram os conflitos, mas a maioria deles foram o que chamamos conflitos assimetricos, com evidencia para o terrorismo adoptado por actores que nao sao Estados, mas estao habilitados a desafiar os Estados.
Estes nao se defrontam com adversarios apoiados numa sociedade civil da qual sao o instrumento, usando exercitos convencionais, as ordens de um governo correspondente ao normativismo internacional: o terrorismo, em vez de enfrentar os exercitos, ataca brutalmente as populacoes inocentes para quebrar o pilar da confianca que as liga ao poder legitimo, explora os meios de comunicacao social do adversario que potenciam os efeitos dissolventes dos atentados, tendo por alvo tambem os tempos que permitam a transmissao em directo, como aconteceu com os atentados de 11 de Setembro e de 11 de Marco.
Como notaram Ignatio Ramonet, jornalista (Le Monde Diplomatique), e Miguel Ballesteros, militar (Revista Expanola de Defensa) a emocao causada pelo telediario faz parte da agressao. O uso da tecnica do santuario, herdada da experiencia do terrorismo territorializado, permitiu-lhe a utilizacao protectora das barreiras das fronteiras geograficas estaduais, abusar da livre circulacao de pessoas para constituir colonias interiores adormecidas no seio das sociedades civis que sao alvo em perspectiva, aprender a manipulacao das redes financeiras e informaticas que servem o transnacionalismo, animar a subversao a cargo de descontentamentos locais, manipular as teorias de justificacao incorporando valores religiosos no apregoado conceito estrategico, descentralizar as iniciativas, nao tornar claros os objectivos, manter o clima de vitoria pelo simples facto de subsistir.
Respingando contribuicoes que se articulam ao longo dos tempos para racionalizar a violencia, designadamente o testemunho do cura Meslier, morto pela greve da fome em 1730, a intervencao do padre Jacques Roux que Marx considerou um antecessor do comunismo, a doutrinacao da guerra das massas populares de Mao e Giap, a experiencia dos artistas da guerrilha como Che Guevara, talvez a mensagem, que este pareceu confiar a Debray, seja uma premissa do terrorismo global: 'pouco importa onde nos surpreendera a morte: que ela seja bem vinda, desde que o nosso grito de guerra seja escutado, que outra mao se estenda para empunhar as nossas armas, e que outros homens se decidam a entoar os cantos de tristeza com um acompanhamento de metralhadoras e novos gritos de guerra e de vitoria'.
O ambiente romantico em que se desenvolveu a premissa, nao deixou antever que a ordem mundial assente na ameaca do holocausto, que foi a dos Pactos Militares (NATO-VARSOVIA), se dissolveria ao mesmo tempo que os agentes nao estaduais da guerra assimetrica se assumiam como titulares do terrorismo global.
Para finalmente tudo confirmar que os ocidentais sao o inimigo eleito pela ponta de lanca muculmana que e a Al Qaeda, orientada pela conviccao de que para a violencia estrutural do Ocidente apenas o terrorismo global e a resposta eficaz.
O Estado democraticamente estruturado, tem de enfrentar um inimigo dotado de agilidade imprevisivel e clandestino, procurando, em regime de contingencia, organizar a prevencao contra agentes para os quais, comprovadamente, morrer nao e um risco.
Acrescendo a dificuldade de interpretar as clausulas da solidariedade das aliancas, como a NATO, como abrangentes de uma agressao que nao tem origem num Estado tal como o direito internacional os define.
Por isso e tambem necessario reformular as cooperacoes internacionais, comecando pelos servicos de informacao e pelo reconhecimento de que ha uma diferenca de natureza entre um perigo ou ameaca internacional, e um perigo ou ameaca transnacional, esta exigindo algum desarme das tradicionais reservas de soberania.
E tambem reformular os conceitos delimitadores das intervencoes das forcas de seguranca e das forcas armadas, porque a ameaca e a agressao nao tem relacao com as antigas fronteiras geograficas.
Este plano de contingencia vem antes, mas nao pode adiar, a investigacao das causas profundas desta situacao de conflito entre poderes que apelam a identificacoes culturais, incluindo as diferencas religiosas, nem dilatar a rapida eliminacao dos focos de destabilizacao como sao os casos de Israel e da intervencao no Iraque.
Ambos tem intima relacao com a deriva unilateralista dos EUA, convindo avaliar a incidencia desta tendencia na crescente agressividade do terrorismo global. Na doutrina estrategica do interesse nacional permanente da superpotencia sobrante houve uma evolucao, que passando por Hans Morgen-thau, E.
H. Carr, George Kennan, encontrou em Person Strange a analista mais heterodoxa porque, como disse Cox, abandonou a definicao do mundo em termos de Estados, para procurar a sede do poder em varias outras entidades, especialmente na area da economia (The defective State, Daedalus 24, 1995).
Mas nao previu que o excesso de poder inclinaria os EUA para o internacionalismo em cruzadas, risco que Kissinger sublinhou com alarme (Diplomacy, 1994). Provavelmente, o mais agudo critico domestico dessa deriva foi Noam Chomsky, que o seu contraditor The New York Times todavia considerou como 'tf mais importante intelectual vivo'.
Esta condescendencia nao comoveu o autor, que viu na primeira guerra do Iraque o exercicio de uma logica fria dos interesses geopoliticos, com uma sinuosa linha de aliancas e repudios, mas movida no mesmo plano da intervencao na Nicaragua, da operacao Causa Justa contra o Panama, ou das operacoes didaticas da Turquia em Chipre, da Indonesia em Timor, de Israel no Libano (World orders old and new, 1994).
Para depois voltar mais asperamente a critica da segunda guerra do Iraque, para sustentar que as politicas militares e globalistas dos EUA, incluindo o projecto de militarizacao do espaco, a displicencia cm relacao ao direito internacional, e a estrategia assumida contra o terrorismo, visam uma hegemonia que ameaca a nossa propria sobrevivencia (Hegemony or survival, 2004).
Nao faltam outras perspectivas menos alarmantes, e sobretudo de justificacao da visao republicana do governo dos EUA, mas esta referida linha domestica ajuda a impedir que as criticas, nao apenas europeias, ao unilateralismo sejam confundidas com um anti-americanismo que apenas contribui para esquecer a dolorosa solidariedade de duas guerras mundiais, e para dar alento a visao da decadencia do ocidente.
A linha critica que pretende impedir a deterioracao da solidariedade atlantica, tem como premissa a valia para a paz mundial do respeito pelo direito internacional, pelas sedes de legitimidade existentes a comecar pela ONU, pela identidade da cultura ocidental, e tem como evidente que os unilateralismos ocidentais agravam o irracionalismo da ameaca que a intervencao no Iraque agudizou.
Sobretudo porque a ambivalencia da politica erratica multiplica as incertezas do mundo em relacao a confiabilidade das potencias interventoras. A guerra, entre outros condicionamentos, implica a suspensao de um mandamento fundamental: nao mataras.
Por isso e tao exigente a avaliacao da justica da guerra, tao minuciosa e ao mesmo tempo fragil a averiguacao do limite a partir do qual a suspensao do mandamento e justificada.
Esta fragilidade na determinacao da guerra justa lida com um limite etico da accao empreendida que e nao violar o respeito pela dignidade humana que o adversario igualmente tem. O perigo da ambivalencia esta sempre presente nessa subida aos extremos, e os orgaos incumbidos de velar pelo cumprimento dos imperativos legais vivem na contingencia de serem ignorados.
A sociologia da guerra nao dispensa um capitulo sobre a desumanidade, que se torna mais aguda quando a ambivalencia se manifesta em intervencoes desencadeadas em nome dos direitos humanos, e da salvaguarda da paz ameacada.
E dificil nao pressentir que esta contingencia foi tomada em conta pela administracao republicana dos EUA quando teve a cautela de recusar a jurisdicao penal internacional em relacao a qualquer eventual empenhamento das suas tropas, sem nunca recusar a pratica das jurisdicoes penais de vencedores.
Ja eram efeitos colaterais dificeis de absorver pela credibilidade ocidental as duvidas sobre a autenticidade das razoes apontadas para dispensar a ONU no processo do Iraque, a falta de comprovacao no terreno da existencia das armas de destruicao macica, o abalo das sedes internacionais da ordem que ainda subsiste, a instabilidade dos governos que aderiram a coligacao.
Nao foi possivel explicar a total falta de planificacao para assegurar uma gestao ao menos razoavel num pais cujos aparelhos administrativos e de seguranca foram desmantelados, eliminando a hipotese de ter um interlocutor valido para a paz.
Uma tecnocracia da violencia adoptou simplificadamente a regra da 'accao com um proposito', o que finalmente teve no Iraque uma demonstracao de laboratorio com a total indignidade a que foram submetidos os prisioneiros de guerra.
A ambivalencia atingiu limites que exigem uma urgente gestao de limitacao dos danos causados a credibilidade ocidental. A invocacao de razoes tecnicas, relacionadas com o rigor dos inqueritos, e a pretendida justificacao dos executantes pelo dever de obediencia, acrescentam a indignidade do tratamento infligido aos detidos uma total displicencia pela relacao do saber com os valores, e uma deliberada rejeicao do principio da obediencia critica que vigorou em Nuremberga para fundamentar a condenacao dos vencidos.
A ambivalencia, na sua logica, e conduzida ate ao ponto da 'eliminacao da identidade moral das suas vitimas', o que teve demonstracoes, por exemplo, na guerra do Pacifico, quando foi mobilizada a colera dos combatentes contra os japoneses que tinham ferido severamente a dignidade americana, e que esta a ser demonstrado pelo terrorismo global que faz dos inocentes o penhor do ambicionado exito.
Uma convergencia que tem uma imperdoavel consequencia, que e implantar a ambivalencia como imagem de todos os ocidentais. O repudio implica responsabilidades e consequencias. Adriano Moreira Indice Prefacio A ambivalencia, por Adriano Moreira I - Terrorismo: o apocalipse da Razao?
(islamismo politico, sociedade, economia), por Adelino Torres II - Inseguranca sem Fronteiras: o Martirio dos Inocentes, por Adriano Moreira III El terrorismo hoy, por Manuel Fraga Iribarne IV - O terrorismo na Biblia, por Peter Stilwell V - O intelectual, a motivacao artistica e o terrorismo VI - Analisis juridico del terrorismo, por Jose Garcia San Pedro VII - Uma visao militar sobre o terrorismo, por Garcia Leandro VIII - Terrorismo - Fundamento de restricao de Direitos?, por Manuel Valente IX - As sociedades contemporaneas e a ameaca terrorista, por Luis Fiaes Fernandes X - A Jihad Global e o contexto europeu, por Maria do Ceu Pinto XI - Terrorismo(s) e usos das Tecnologias da Informacao e da Comunicacao, por Maria Joao Simoes XII - O novo terrorismo internacional como desafio emergente de seguranca, por Nuno Rogeiro Indice onomastico
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Autor(es) | |
Editora | Almedina |
Idioma | Português |
ISBN | 9724023192 9789724023199 |
Formato | Capa comum |
Páginas | 570 |
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